terça-feira, 29 de setembro de 2020

Inconstitucionalidade da vedação à compensação de créditos de contribuição previdenciária com débitos de tributos administrados pela Receita contida no art. 26 da lei 11.457/07


Ednaldo Rodrigues de Almeida Filho 


Parágrafo único do artigo 26 da lei 11.457/07 afronta o princípio da igualdade. 

No recente julgamento do AgRg no REsp 1.292.797/CE1, o STJ, confirmando a sua jurisprudência sobre a matéria, afastou a incidência de contribuição  previdenciária sobre o terço constitucional de férias e o auxílio-doença, ante a  natureza indenizatória dessas verbas. Nessa mesma linha, a Corte Especial  também considera indevida a inclusão na base de cálculo daquela  contribuição das parcelas pagas a título de auxílio-educação2, auxílio acidente3, auxílio-creche4 e aviso prévio indenizado5, por exemplo, e, nesses  casos, reconhece o direito ao crédito referente aos valores indevidamente  recolhidos pelos contribuintes. 

No entanto, na contramão desse entendimento, o STJ, com fundamento no  parágrafo único do art. 26 da lei 11.457/076, somente autoriza a compensação  desses créditos de contribuição previdenciária com débitos de mesma  natureza. Em outras palavras, a Corte Especial afasta a possibilidade de os  contribuintes compensarem créditos de contribuição previdenciária  reconhecidos judicialmente com débitos de quaisquer outros tributos  administrado pela RFB - Receita Federal do Brasil, na forma autoriza pela  regra geral contida no caput do art. 74 da lei 9.430/967. 

À guisa de exemplificação, colaciona-se o acórdão proferido no julgamento  do REsp 1.243.162/PR, ocorrido em 13/3/12, que resume bem o  entendimento do Tribunal: 

"RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. COMPENSAÇÃO. TRIBUTOS  ADMINISTRADOS PELA ANTIGA RECEITA FEDERAL (CRÉDITOS DE PIS E COFINS DECORRENTES DE EXPORTAÇÃO) COM CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. IMPOSSIBILIDADE. ART. 26 DA LEI Nº 11.457/07.  PRECEDENTES. 

1. É ilegítima a compensação de créditos tributários administrados pela antiga Receita Federal (PIS e COFINS decorrentes de exportação) com débitos de natureza previdenciáriaantes administrados pelo INSS (art. 11 da Lei n. 8.212/91), ante a vedação legal estabelecida no art. 26 da Lei n. 11.457/07. Precedentes.

2. O art. 170 do CTN é claro ao submeter o regime de compensação à expressa  previsão legal. Em outras palavras, é ilegítima a compensação não prevista em lei. No  caso, há regra expressa no ordenamento jurídico, especificamente o art. 26 da Lei  11.457/07, a impedir a compensação pretendida pela recorrente. 

3. Recurso especial não provido." [grifos nossos] 

Ocorre, porém, que a aplicação isolada desse dispositivo, além de ir de  encontro ao art. 2° da própria lei 11.457/07 e ao art. 74 da lei 9.430/96, viola  sobremaneira o art. 150, II daCF/88, norma cogente que impõe ao legislador o  dever de tratar as partes da relação jurídico-tributária de forma isonômica. 

Como se sabe, com a criação da chamada "Super Receita", fruto da união  das antigas Secretaria da Receita Federal e Previdência Social, pela lei  11.457/07, a atual Receita Federal do Brasil passou a deter a competência de  tributação, fiscalização, arrecadação, cobrança e recolhimento das  contribuições previdenciárias previstas nas alíneas 'a', 'b', e 'c' do parágrafo  único do art. 11 da lei 8.212/91, as quais, por inferência lógica, passaram a se  enquadrar no conceito de "tributos administrados pela Receita Federal". 

No entanto, de forma contraditória, essa mesma lei vedou a aplicação do art.  74 da lei 9.430/96, que autoriza a compensação de créditos de quaisquer  tributos federais com débitos de quaisquer tributos administrados pela RFB,  às contribuições previdenciárias cuja administração foi transferida à RFB pelo  art. 2° da lei 11.457/07. 

Ou seja: de um lado, a lei 11.457/07 transferiu a administração das  contribuições previdenciárias à RFB; de outro, deixou de considerá-las "tributo  administrado pela Receita Federal do Brasil" para fins de aplicação do regime  de compensação tributária previsto na lei 9.430/96. 

Não bastasse essa evidente contradição, o parágrafo único do art. 26 da lei  11.457/07, ao prever desarrazoada restrição ao direito dos contribuintes  compensarem créditos de contribuição previdenciária com débitos de  quaisquer outros tributos administrados pela RFB, afronta o art. 150, II da  CF/88, cujo conteúdo veda a aplicação de tratamento desigual quando as  partes da relação jurídico-tributária se encontram em situação de  equivalência8, tal como ocorre na situação em análise. 

Primeiramente, o partir do momento em que novos tributos ingressam na  estrutura da RFB, que passa a administrá-los, fiscalizá-los e controlá-los, não  há justificativa plausível para que eles não possam ser objeto da  compensação já anteriormente prevista pelo legislador federal. Permitir, por  exemplo, que um contribuinte compense débitos de IRPJ com créditos de  COFINS e não permitir que outro o faça com relação a créditos de contribuição previdenciária não encontra respaldo em qualquer  fundamentação razoável. 

Nesse ponto, as lições de SCHOUERI sobre o tema mostram-se bastante  pertinentes. Analisando o princípio da igualdade, após concluir que o art. 150,  II, da CF/88 estaria "desatendido quando situações iguais (segundo um  critério) são tratadas de modo diferente", bem como "quando não se  consegue identificar um critério para o tratamento diferenciado” (hipótese que  se adequa perfeitamente ao caso em análise), o Autor defende que os  “parâmetros de discriminação razoáveis" estão contidos na própria  Constituição Federal, afora dos quais é inadmissível a eleição de qualquer  critério de discriminação que afronte direitos e garantias individuais. Nas  palavras do professor titular da USP: 

"O próprio constituinte cuidou de arrolar algumas das hipóteses em que se considerará  a ocorrência de um privilégio odioso, i.e., fatores que não se aceitarão como base do  discrímen por expressa disposição constitucional. Tais fatores se encontram nos  artigos 150, II, 151, 152 e 173. 

[...] 

Parâmetros expressamente aceitos são, por exemplo, a capacidade contributiva (artigo  145, § 1°); a essencialidade (artigos 153, § 3°, I e 155, § 2°, III); o destino ao exterior  (artigo 153, § 3°, III, artigo 155, § 2°, X, 'a', e artigo 156, § 3°, II); o uso da  propriedade segundo sua função social (artigo 153, § 4° e 182, § 4°, II); localização e  uso do imóvel (artigo 156, § 1°, II); o ato cooperativo praticados pelas sociedades  cooperativas (artigo 146, III, 'c'); tratamento diferenciado às microempresas e às  empresas de pequeno porte (artigo 179) etc."9 

Em segundo lugar, no que concerne à possibilidade de compensação  tributária, contribuinte e Fisco estão em situações absolutamente iguais. Isso  porque é de interesse comum efetuar a compensação, extinguindo o crédito  tributário, nos termos do art. 156, II, do CTN10, seja para não terem de  efetivamente desembolsar nenhum valor, seja para que esse desembolso  seja reduzido. 

Acontece, porém, que as duas situações vêm recebendo tratamento legal  ilegitimamente diferenciado, porquanto o art. 7°, § 2° do decreto-lei 2.287/8611 autoriza a compensação de créditos (da União Federal) de tributos  administrados pela RFB com débitos de contribuição previdenciária (do  contribuinte), a exclusivo critério do Fisco Federal. 

Vê-se, portanto, que duas situações equivalentes são tratadas pelo legislador  com absoluta desigualdade:

(I) se o contribuinte possuir créditos (próprios) de contribuição previdenciária  para com o Fisco Federal e pretender compensá-los com débitos (próprios)  de outros tributos federais, isso é vedado pela legislação (art. 26, parágrafo  único, da lei 11.457/07); 

(II) por outro lado, se o contribuinte possuir um crédito de tributo federal e  pretender ressarcir-se ou restituir-se, o Fisco Federal poderá compensar "de  ofício" esse crédito com débitos de contribuição previdenciária (do  contribuinte) porventura existentes (art. 7°, § 2° do decreto-lei 2.287/86). 

Assim, diante de tão cristalina violação ao princípio da igualdade (pois é  inconcebível que se admita a compensação entre tributos administrados pela  RFB e a contribuição previdenciária, quando do interesse do Fisco, mas não  se possibilite a mesma compensação, quando do interesse do contribuinte) e  da incompetência do STJ para apreciar matéria constitucional, deve o STF  declarar a inconstitucionalidade do art. 26, parágrafo único, da lei 11.457/07,  assegurando o direito dos contribuintes compensarem créditos (ou débitos) de  contribuição com débitos (ou créditos) de quaisquer outros tributos  administrados pela RFB12. 

____________ 

1 STJ, AgRg no REsp 1292797/CE, Primeira Turma, Rel. Min. Ari Pargendler, julgado em  12/03/2013, DJe 20/03/2013. 

2 STJ, AgRg no AREsp 182495/RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em  26/02/2013, DJe 07/03/2013. 

3 STJ, REsp 1149071/SC, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 02/09/2010,  DJe 22/09/2010. 

4 STJ, REsp 1146772/DF, Primeira Seção, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 04/03/2010. 5STJ, AgRg nos EDcl no AREsp 135682/MG, Segunda Turma, Rel. Min. Herman Benjamin,  julgado em 29/05/2012, DJe 14/06/2012. 

6 "Art. 26. O valor correspondente à compensação de débitos relativos às contribuições de  que trata o art. 2o desta Lei será repassado ao Fundo do Regime Geral de Previdência  Social no máximo 2 (dois) dias úteis após a data em que ela for promovida de ofício ou em  que for deferido o respectivo requerimento. 

Parágrafo único. O disposto no art. 74 da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996, não se  aplica às contribuições sociais a que se refere o art. 2o desta Lei." 

7 "Art. 74. O sujeito passivo que apurar crédito, inclusive os judiciais com trânsito em julgado,  relativo a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal, passível de  restituição ou de ressarcimento, poderá utilizá-lo na compensação de débitos próprios  relativos a quaisquer tributos e contribuições administrados por aquele Órgão."

8 Utiliza-se, no presente trabalho, a expressão "equivalência" nos termos propostos por Luís  Eduardo Schoueri (SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 2a ed. São Paulo: Saraiva,  2012, pág.317/319). Para o professor titular da USP, o princípio da igualdade, insculpido no  art. 150,II, da Constituição Federal, trata das situações de equivalência, e não de identidade,  razão pela qual a igualdade seria sempre relativa, pressupondo a existência de um critério de  comparação. 

9 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 2a ed. São Paulo: Saraiva, 2012, pág. 319. 

10 "Art. 156. Extinguem o crédito tributário: 

[...] 

II - a compensação; [...]" 

11 Art. 7º A Receita Federal do Brasil, antes de proceder à restituição ou ao ressarcimento de  tributos, deverá verificar se o contribuinte é devedor à Fazenda Nacional. 

[...] 

§ 2º Existindo, nos termos da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966, débito em nome do  contribuinte, em relação às contribuições sociais previstas nas alíneas a, b e c do parágrafo  único do art. 11 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, ou às contribuições instituídas a  título de substituição e em relação à Dívida Ativa do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, o valor da restituição ou ressarcimento será compensado, total ou parcialmente, com o  valor do débito. [...] 

12 Essa contradição denunciada no presente trabalho vem sendo corrigida no caso concreto  por alguns Tribunais. No julgamento do AMS 334343, por exemplo, o TRF-3, apesar de não  enfrentar a questão sob a ótica do princípio da igualdade, captou a mens legis do legislador  infraconstitucional e autorizou a compensação de créditos de contribuição previdenciária com  débitos de quaisquer tributos administrados pela RFB. Segue trecho da ementa do acórdão:  "No caso dos autos o encontro de contas poderá se dar com quaisquer tributos administrados  pela Receita Federal (artigo 74, Lei n° 9.430/96, com redação da Lei n° 10.637/2002), ainda  mais que com o advento da Lei n° 11.457 de 16/03/2007, arts. 2° e 3°, a tributação,  fiscalização, arrecadação, cobrança e recolhimento das contribuições sociais e das contribuições devidas a "terceiros" passaram a ser encargos da Secretaria da Receita  Federal do Brasil (super-Receita), passando a constituir dívida ativa da União (artigo 16)." 

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* Ednaldo Rodrigues de Almeida Filho é advogado do escritório Martorelli Advogados.


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