Ednaldo Rodrigues de Almeida Filho
Parágrafo único do artigo 26 da lei 11.457/07 afronta o princípio da igualdade.
No recente julgamento do AgRg no REsp 1.292.797/CE1, o STJ, confirmando a sua jurisprudência sobre a matéria, afastou a incidência de contribuição previdenciária sobre o terço constitucional de férias e o auxílio-doença, ante a natureza indenizatória dessas verbas. Nessa mesma linha, a Corte Especial também considera indevida a inclusão na base de cálculo daquela contribuição das parcelas pagas a título de auxílio-educação2, auxílio acidente3, auxílio-creche4 e aviso prévio indenizado5, por exemplo, e, nesses casos, reconhece o direito ao crédito referente aos valores indevidamente recolhidos pelos contribuintes.
No entanto, na contramão desse entendimento, o STJ, com fundamento no parágrafo único do art. 26 da lei 11.457/076, somente autoriza a compensação desses créditos de contribuição previdenciária com débitos de mesma natureza. Em outras palavras, a Corte Especial afasta a possibilidade de os contribuintes compensarem créditos de contribuição previdenciária reconhecidos judicialmente com débitos de quaisquer outros tributos administrado pela RFB - Receita Federal do Brasil, na forma autoriza pela regra geral contida no caput do art. 74 da lei 9.430/967.
À guisa de exemplificação, colaciona-se o acórdão proferido no julgamento do REsp 1.243.162/PR, ocorrido em 13/3/12, que resume bem o entendimento do Tribunal:
"RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. COMPENSAÇÃO. TRIBUTOS ADMINISTRADOS PELA ANTIGA RECEITA FEDERAL (CRÉDITOS DE PIS E COFINS DECORRENTES DE EXPORTAÇÃO) COM CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. IMPOSSIBILIDADE. ART. 26 DA LEI Nº 11.457/07. PRECEDENTES.
1. É ilegítima a compensação de créditos tributários administrados pela antiga Receita Federal (PIS e COFINS decorrentes de exportação) com débitos de natureza previdenciáriaantes administrados pelo INSS (art. 11 da Lei n. 8.212/91), ante a vedação legal estabelecida no art. 26 da Lei n. 11.457/07. Precedentes.
2. O art. 170 do CTN é claro ao submeter o regime de compensação à expressa previsão legal. Em outras palavras, é ilegítima a compensação não prevista em lei. No caso, há regra expressa no ordenamento jurídico, especificamente o art. 26 da Lei 11.457/07, a impedir a compensação pretendida pela recorrente.
3. Recurso especial não provido." [grifos nossos]
Ocorre, porém, que a aplicação isolada desse dispositivo, além de ir de encontro ao art. 2° da própria lei 11.457/07 e ao art. 74 da lei 9.430/96, viola sobremaneira o art. 150, II daCF/88, norma cogente que impõe ao legislador o dever de tratar as partes da relação jurídico-tributária de forma isonômica.
Como se sabe, com a criação da chamada "Super Receita", fruto da união das antigas Secretaria da Receita Federal e Previdência Social, pela lei 11.457/07, a atual Receita Federal do Brasil passou a deter a competência de tributação, fiscalização, arrecadação, cobrança e recolhimento das contribuições previdenciárias previstas nas alíneas 'a', 'b', e 'c' do parágrafo único do art. 11 da lei 8.212/91, as quais, por inferência lógica, passaram a se enquadrar no conceito de "tributos administrados pela Receita Federal".
No entanto, de forma contraditória, essa mesma lei vedou a aplicação do art. 74 da lei 9.430/96, que autoriza a compensação de créditos de quaisquer tributos federais com débitos de quaisquer tributos administrados pela RFB, às contribuições previdenciárias cuja administração foi transferida à RFB pelo art. 2° da lei 11.457/07.
Ou seja: de um lado, a lei 11.457/07 transferiu a administração das contribuições previdenciárias à RFB; de outro, deixou de considerá-las "tributo administrado pela Receita Federal do Brasil" para fins de aplicação do regime de compensação tributária previsto na lei 9.430/96.
Não bastasse essa evidente contradição, o parágrafo único do art. 26 da lei 11.457/07, ao prever desarrazoada restrição ao direito dos contribuintes compensarem créditos de contribuição previdenciária com débitos de quaisquer outros tributos administrados pela RFB, afronta o art. 150, II da CF/88, cujo conteúdo veda a aplicação de tratamento desigual quando as partes da relação jurídico-tributária se encontram em situação de equivalência8, tal como ocorre na situação em análise.
Primeiramente, o partir do momento em que novos tributos ingressam na estrutura da RFB, que passa a administrá-los, fiscalizá-los e controlá-los, não há justificativa plausível para que eles não possam ser objeto da compensação já anteriormente prevista pelo legislador federal. Permitir, por exemplo, que um contribuinte compense débitos de IRPJ com créditos de COFINS e não permitir que outro o faça com relação a créditos de contribuição previdenciária não encontra respaldo em qualquer fundamentação razoável.
Nesse ponto, as lições de SCHOUERI sobre o tema mostram-se bastante pertinentes. Analisando o princípio da igualdade, após concluir que o art. 150, II, da CF/88 estaria "desatendido quando situações iguais (segundo um critério) são tratadas de modo diferente", bem como "quando não se consegue identificar um critério para o tratamento diferenciado” (hipótese que se adequa perfeitamente ao caso em análise), o Autor defende que os “parâmetros de discriminação razoáveis" estão contidos na própria Constituição Federal, afora dos quais é inadmissível a eleição de qualquer critério de discriminação que afronte direitos e garantias individuais. Nas palavras do professor titular da USP:
"O próprio constituinte cuidou de arrolar algumas das hipóteses em que se considerará a ocorrência de um privilégio odioso, i.e., fatores que não se aceitarão como base do discrímen por expressa disposição constitucional. Tais fatores se encontram nos artigos 150, II, 151, 152 e 173.
[...]
Parâmetros expressamente aceitos são, por exemplo, a capacidade contributiva (artigo 145, § 1°); a essencialidade (artigos 153, § 3°, I e 155, § 2°, III); o destino ao exterior (artigo 153, § 3°, III, artigo 155, § 2°, X, 'a', e artigo 156, § 3°, II); o uso da propriedade segundo sua função social (artigo 153, § 4° e 182, § 4°, II); localização e uso do imóvel (artigo 156, § 1°, II); o ato cooperativo praticados pelas sociedades cooperativas (artigo 146, III, 'c'); tratamento diferenciado às microempresas e às empresas de pequeno porte (artigo 179) etc."9
Em segundo lugar, no que concerne à possibilidade de compensação tributária, contribuinte e Fisco estão em situações absolutamente iguais. Isso porque é de interesse comum efetuar a compensação, extinguindo o crédito tributário, nos termos do art. 156, II, do CTN10, seja para não terem de efetivamente desembolsar nenhum valor, seja para que esse desembolso seja reduzido.
Acontece, porém, que as duas situações vêm recebendo tratamento legal ilegitimamente diferenciado, porquanto o art. 7°, § 2° do decreto-lei 2.287/8611 autoriza a compensação de créditos (da União Federal) de tributos administrados pela RFB com débitos de contribuição previdenciária (do contribuinte), a exclusivo critério do Fisco Federal.
Vê-se, portanto, que duas situações equivalentes são tratadas pelo legislador com absoluta desigualdade:
(I) se o contribuinte possuir créditos (próprios) de contribuição previdenciária para com o Fisco Federal e pretender compensá-los com débitos (próprios) de outros tributos federais, isso é vedado pela legislação (art. 26, parágrafo único, da lei 11.457/07);
(II) por outro lado, se o contribuinte possuir um crédito de tributo federal e pretender ressarcir-se ou restituir-se, o Fisco Federal poderá compensar "de ofício" esse crédito com débitos de contribuição previdenciária (do contribuinte) porventura existentes (art. 7°, § 2° do decreto-lei 2.287/86).
Assim, diante de tão cristalina violação ao princípio da igualdade (pois é inconcebível que se admita a compensação entre tributos administrados pela RFB e a contribuição previdenciária, quando do interesse do Fisco, mas não se possibilite a mesma compensação, quando do interesse do contribuinte) e da incompetência do STJ para apreciar matéria constitucional, deve o STF declarar a inconstitucionalidade do art. 26, parágrafo único, da lei 11.457/07, assegurando o direito dos contribuintes compensarem créditos (ou débitos) de contribuição com débitos (ou créditos) de quaisquer outros tributos administrados pela RFB12.
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1 STJ, AgRg no REsp 1292797/CE, Primeira Turma, Rel. Min. Ari Pargendler, julgado em 12/03/2013, DJe 20/03/2013.
2 STJ, AgRg no AREsp 182495/RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 26/02/2013, DJe 07/03/2013.
3 STJ, REsp 1149071/SC, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 02/09/2010, DJe 22/09/2010.
4 STJ, REsp 1146772/DF, Primeira Seção, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 04/03/2010. 5STJ, AgRg nos EDcl no AREsp 135682/MG, Segunda Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 29/05/2012, DJe 14/06/2012.
6 "Art. 26. O valor correspondente à compensação de débitos relativos às contribuições de que trata o art. 2o desta Lei será repassado ao Fundo do Regime Geral de Previdência Social no máximo 2 (dois) dias úteis após a data em que ela for promovida de ofício ou em que for deferido o respectivo requerimento.
Parágrafo único. O disposto no art. 74 da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996, não se aplica às contribuições sociais a que se refere o art. 2o desta Lei."
7 "Art. 74. O sujeito passivo que apurar crédito, inclusive os judiciais com trânsito em julgado, relativo a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal, passível de restituição ou de ressarcimento, poderá utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a quaisquer tributos e contribuições administrados por aquele Órgão."
8 Utiliza-se, no presente trabalho, a expressão "equivalência" nos termos propostos por Luís Eduardo Schoueri (SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 2a ed. São Paulo: Saraiva, 2012, pág.317/319). Para o professor titular da USP, o princípio da igualdade, insculpido no art. 150,II, da Constituição Federal, trata das situações de equivalência, e não de identidade, razão pela qual a igualdade seria sempre relativa, pressupondo a existência de um critério de comparação.
9 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 2a ed. São Paulo: Saraiva, 2012, pág. 319.
10 "Art. 156. Extinguem o crédito tributário:
[...]
II - a compensação; [...]"
11 Art. 7º A Receita Federal do Brasil, antes de proceder à restituição ou ao ressarcimento de tributos, deverá verificar se o contribuinte é devedor à Fazenda Nacional.
[...]
§ 2º Existindo, nos termos da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966, débito em nome do contribuinte, em relação às contribuições sociais previstas nas alíneas a, b e c do parágrafo único do art. 11 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, ou às contribuições instituídas a título de substituição e em relação à Dívida Ativa do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, o valor da restituição ou ressarcimento será compensado, total ou parcialmente, com o valor do débito. [...]
12 Essa contradição denunciada no presente trabalho vem sendo corrigida no caso concreto por alguns Tribunais. No julgamento do AMS 334343, por exemplo, o TRF-3, apesar de não enfrentar a questão sob a ótica do princípio da igualdade, captou a mens legis do legislador infraconstitucional e autorizou a compensação de créditos de contribuição previdenciária com débitos de quaisquer tributos administrados pela RFB. Segue trecho da ementa do acórdão: "No caso dos autos o encontro de contas poderá se dar com quaisquer tributos administrados pela Receita Federal (artigo 74, Lei n° 9.430/96, com redação da Lei n° 10.637/2002), ainda mais que com o advento da Lei n° 11.457 de 16/03/2007, arts. 2° e 3°, a tributação, fiscalização, arrecadação, cobrança e recolhimento das contribuições sociais e das contribuições devidas a "terceiros" passaram a ser encargos da Secretaria da Receita Federal do Brasil (super-Receita), passando a constituir dívida ativa da União (artigo 16)."
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* Ednaldo Rodrigues de Almeida Filho é advogado do escritório Martorelli Advogados.
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