Fortalecimento dos estados e municípios na reforma tributária
No espinhoso debate da violação à autonomia financeira, o que é visto como problema pode ser a solução
RESUMO: O artigo discute a reforma tributária e o fortalecimento dos estados e municípios. Destaca-se a necessidade de substituir o ICMS e o ISS por um único Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) subnacional. Embora haja preocupações com a perda de autonomia financeira dos entes federativos, a criação de um Conselho Federativo para gerenciar o IBS é vista como uma oportunidade de fortalecer o poder coletivo das esferas subnacionais. O Conselho será composto por representantes dos estados e municípios e terá a função de normatizar, regulamentar e arrecadar o imposto, buscando harmonizar as normas e procedimentos. O artigo argumenta que a reforma não fragiliza a posição dos entes subnacionais, mas fortalece a cooperação federativa e o equilíbrio federativo.
Terça-feira, 18 de julho 2023
Os efeitos da manutenção de um sistema complexo e pouco racional de tributos incidentes sobre o consumo foram sentidos por todos.
Os estados perderam arrecadação ao longo do tempo pelas desonerações promovidas visando à atração de investimentos. A União passou a protagonizar a formulação e execução de políticas públicas e concentrou ainda mais o produto da arrecadação através de suas contribuições sociais[1].
Sequer é necessário entrar em detalhes acerca das repercussões econômicas sobre os particulares de um sistema em que a neutralidade tributária não é regra. Enfim, se não são nítidas e evidentes as penalidades infringidas à economia, é certo que o sistema tributário atual nada ajuda em momentos de crise.
As noções de simplificação e uniformização da tributação do consumo enfrentaram — e enfrentam — fortes e perenes resistências. São exemplos a dos contribuintes privilegiados pelas regras atuais, e a dos estados, com seus Regulamentos do ICMS, seus benefícios fiscais e suas burocracias fazendárias.
Foram necessários quase dez anos de estagnação econômica e crise generalizada das finanças estaduais para que se criasse consenso sobre a necessidade de substituição do ICMS e do ISS por um único Imposto Sobre Bens e Serviços (IBS) subnacional, de regras e aplicação uniforme em todo o país.
Com tranquilidade tem se compreendido que a simplificação tributária tende à redução de entraves ao desenvolvimento econômico, o que pode auxiliar no aumento da arrecadação pela Fazenda Pública. Pelo potencial positivo sobre a economia real, a reforma tem sido amplamente defendida.
Porém, um dos problemas que se apresentam com a aprovação da PEC 45 pela Câmara dos Deputados é o da efetiva operacionalização do novo sistema à luz do princípio federativo.
É nesta seara que a ideia de instituição de um Conselho Federativo para a gerência do IBS tem sido polemizada. As preocupações têm fundo, sobretudo, na suposta perda de autonomia financeira dos entes federativos, haja vista as aparentemente amplas funções do órgão.
De fato, em um ambiente em que o Conselho será competente para normatizar, regulamentar, arrecadar, efetuar compensações, distribuir a arrecadação e dirimir questões do contencioso tributário, são plausíveis as dúvidas: estaria se criando uma aberração jurídico-federativa na forma de uma instituição onipotente que retirará sobremaneira o poder dos entes federativos? Estariam esvaziadas as funções dos entes no que se refere aos impostos indiretos? De que servirão as Secretarias de Fazenda e as Procuradorias Tributárias?
Efetivamente, não se deve ignorar tais preocupações do ponto de vista federativo.
No entanto, o que se deve destacar é que, embora o texto aprovado dê margem à interpretação de redução do poder individual dos entes, há, na outra ponta, tendência a um potencial fortalecimento do poder coletivo das esferas subnacionais.
Em primeiro lugar, desfaça-se o mito maior: o Conselho Federativo do IBS não terá participação da União.
Nada obstante o desenho constitucional idêntico dos novos tributos — CBS e IBS —, que deverão operar com alta similitude, a administração do primeiro pela União será independente da administração do segundo pelos demais entes na forma do Conselho Federativo. Tanto é assim que se prevê o compartilhamento das informações fiscais entre as duas esferas, visando “harmonizar normas, interpretações e procedimentos” referentes aos tributos, conforme redação proposta ao art. 156-B, §5º da Constituição.
A rigor, diga-se que o Conselho será formado por representantes dos estados e Distrito Federal — de forma paritária —, e dos municípios — parte em paridade, parte proporcionalmente, de acordo com a população.
Suas deliberações, por sua vez, serão realizadas em três etapas. Em uma primeira rodada, será aferida a vontade da maioria absoluta do conjunto dos estados e do distrito federal. Posteriormente, a normativa deverá ser acatada pelo conjunto de representantes estaduais e distrital que correspondam a mais de 60% da população nacional. Por fim, haverá rodada de votação dos representantes dos municípios e do Distrito Federal, na qual se aferirá a vontade da maioria absoluta.
Para além da composição do órgão deliberativo máximo, quanto à operação do futuro órgão, a PEC desde já estabelece: (i) o controle externo pelos Poderes Legislativos dos entes (Art. 156-B, §2º, IV); (ii) a coordenação para atuação integrada dos entes na fiscalização, lançamento, cobrança e representação administrativa e judicial do imposto (Art. 156-B, §2º, V); (iii) o aproveitamento de servidores de carreira das procuradorias e administrações tributárias dos entes no âmbito do Conselho (Art. 156-B, §2º, VI).
À vista de tais normas e das considerações já realizadas, é possível começar a formular respostas às questões previamente formuladas.
Em primeira linha, nada indica que o Conselho seja uma aberração jurídico-federativa. Pelo contrário. Como já descreveu Bernard Appy, ao menos no que se refere à arrecadação do imposto, reconhecimento de créditos e distribuição do produto arrecadado, sua função é a execução de um algoritmo[2]. Nesse sentido, de fato, é um órgão puramente técnico e nada onipotente, haja vista, inclusive, a previsão de controle externo.
Por outro lado, eventual perda da função arrecadatória não pode, por si só, ser entendida como perda da autonomia financeira. Não há quaisquer indícios, na reforma aprovada, de que ocorrerá o esvaziamento substancial de poderes dos fiscos estaduais e municipais.
De fato, não mais caberão certas funções operacionais, como por exemplo a emissão de guias para pagamento dos tributos e a distribuição de créditos. Mas nada se alterará quanto à substancial e necessária fiscalização pelos entes das operações atingidas pelo imposto. Diga-se inclusive, que a transferência de certas competências ao Conselho poderá aumentar a produtividade das administrações tributárias em operações visando ao combate a evasões e ao robustecimento das receitas.
Boníssima notícia, inclusive, é previsão de coordenação da atuação dos fiscos e procuradorias tributárias dos entes federados, com necessária maior interlocução intra esferas e inter esferas federativas.
Quanto à vedação à outorga, por cada ente federado, de benefícios fiscais, não é preciso desenvolver muito a noção já estabelecida dos efeitos nocivos de tal prática. Aliás, relembre-se que o combate a tal expediente, generalizado na federação, é um dos objetivos explícitos da reforma, visando à redução da guerra fiscal, recomposição das receitas subnacionais e ao equilíbrio federativo.
Por certo, não se trata o presente artigo de uma defesa cega do Conselho Federativo do IBS, ou de uma contemplação exaustiva dos efeitos da reforma tributária sobre a federação. Muito porque fazê-los atualmente é impossível. Depende-se da continuidade do processo legislativo, da efetiva promulgação da Emenda Constitucional, se for o caso, da edição de Lei Complementar específica, e da efetiva análise do funcionamento do órgão.
Porém, o que se pode dizer, ao menos em resposta a questões como as formuladas no início do artigo, é que o texto aprovado na Câmara dos Deputados em nada indica fragilização da posição dos entes subnacionais.
Pelo contrário, previsões da PEC 45 como a instituição do Conselho Federativo do IBS possibilitam a construção de uma arena de discussão perene entre os entes federados.
É positiva a criação de um espaço para que os entes possam debater, traçar estratégias e chegar a soluções comuns sem a interferência da União Federal, com redução do facciosismo político e sem os vícios de uniões meramente macrorregionais. O texto da reforma privilegia a cooperação federativa ampla e horizontal, de modo a fortalecer, por consequência, a força coletiva dos estados e municípios e incrementar o equilíbrio federativo.
Fonte > JOTA > JOÃO CARLOS NOGUEIRA
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