Um IVA da era digital: split payment e a reforma tributária
Após anos de discussão, foi aprovada a reforma da tributação do consumo no Brasil, com a promulgação da Emenda Constitucional 132, de 20 de dezembro de 2023, fruto da PEC 45/2019.
O Brasil passa a ter um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dual: um de competência federal – Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) – e outro de competência estadual e municipal – Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).
A lógica que norteou a elaboração do IBS e da CBS teve como base doutrina nacional e estrangeira quanto às regras que deviam nortear um IVA para ser considerado de boa qualidade.
Um IVA do mundo ideal, segundo resumo da australiana, doutora em política tributária, Kathryn James, deveria atender essas três regras:
- Incidir sobre uma base ampla de consumo (incluindo bens e serviços e todas etapas, desde a produção até a venda a varejo) a uma alíquota única;
- Ser cobrado através do método de crédito, apurado por meio das notas fiscais, que permita abater os impostos pagos nas etapas anteriores dos impostos devidos nas vendas subsequentes;
- Adotar o princípio do destino, segundo o qual o tributo é devido no local do seu consumo.
Percebe-se que o IBS e a CBS evoluíram em vários aspectos das regras acima em relação aos seus antecessores, em especial o ICMS e o PIS e COFINS não cumulativos.
A reforma tributária trouxe: (1) a implementação do princípio de destino, para a definição do sujeito ativo do tributo (art. 156-A, §1º, inciso VII), (2) a redução da gama de alíquotas do IBS e CBS (art. 156-A, §1º incisos VI, XII), (3) a extinção da maioria dos benefícios fiscais e regimes especiais que eram concedidos pelos Estados e municípios (art. 156-A, §1º, inciso X) e (4) o fim da divisão entre bens e serviços, que gerava um contencioso excessivo (art. 156-A, §1º, inciso I da CF), (5) o crédito financeiro, em troca do crédito físico do ICMS.
Nada obstante, dentre as mudanças trazidas pela reforma tributária no design do IVA brasileiro sobre consumo, aquela que pode causar a maior disrupção no sistema tributário brasileiro e quiçá no sistema tributário mundial é a previsão do split payment (art. 156-A, §5º, inciso II, alínea b, da CF).
O split payment (pagamento dividido) consiste em uma divisão do valor do tributo incidente sobre o consumo e o valor líquido devido ao vendedor, por ocasião do processamento da liquidação financeira da operação. O Estado recebe o tributo diretamente e o vendedor recebe sua parte líquida de impostos.
Junto com essa nova forma de cobrança e fiscalização do tributo em tempo real, está prevista a possibilidade de lei complementar definir como sujeito passivo do imposto “pessoas que concorram para a realização, execução ou pagamento da operação, ainda que residente e domiciliada no exterior” (art. 156-A, §3º, da CF).
Isso permitirá a inclusão, como responsáveis pelo recolhimento do tributo sobre consumo, de outros agentes, que melhor capturam a substância econômica do consumo, tais como: os intermediadores (marketplaces) e os meios de pagamento.
Essas mudanças têm o potencial de colocar o Brasil em um patamar de Administração Tributária Exponencial, com um nível de modernização que nenhum país adotante de tributos do tipo IVA possui atualmente.
O novo design do IVA tem ainda o potencial de reduzir, de forma significativa, a inadimplência programada, a sonegação, a alta litigiosidade tributária e os altos custos de conformidade, fiscalização e cobrança.
Isso porque os grandes problemas que tributos do tipo IVA enfrentam se referem ao sistema de crédito do tributo, aquele que permite a cada elo da cadeia econômica abater o imposto pago na etapa anterior.
No Brasil esse problema se reflete em duas situações principais, responsáveis pela maioria do rombo arrecadatório:
- criação de créditos tributários fictícios, com notas frias;
- devedor contumaz na última etapa da cadeia (consumo final).
No caso da fraude de notas frias, empresas fantasmas são criadas apenas para emitir notas fiscais de supostas vendas que não ocorrem de fato, com o fim de diminuir o imposto a pagar do próximo elo da cadeia. Exemplo: um supermercado ao vender mercadorias tem que recolher o ICMS (atual IVA) incidente sobre sua venda. No entanto, ele pode abater desse valor a recolher o montante que pagou de ICMS ao comprar a mercadoria de seu fornecedor.
A fraude consiste em criar empresas de falsos fornecedores que não venderam nada ao supermercado, mas emitem notas fiscais documentalmente verdadeiras, porém sem substância econômica real, com o único objetivo de diminuir o imposto a pagar do supermercado por suas vendas.
Essa fraude é possível, porque o crédito (abatimento do imposto) pago nas etapas anteriores é condicionado apenas à emissão de nota fiscal e não ao efetivo pagamento do tributo aos cofres públicos.
A outra fraude comum no Brasil ocorre na última etapa da cadeia econômica, o devedor contumaz na compra pelo consumidor final.
Nessa situação, o vendedor cobra o tributo do consumidor, o consumidor paga o preço integral, mas o vendedor simplesmente não recolhe o tributo para o Estado e o utiliza para outros fins. Ele declara que deve o tributo, mas não paga. Alguns comerciantes usam o não pagamento como estratégia de negócio para quebrar a concorrência e praticar preços menores, já que a coerção estatal para cobrança é muito baixa.
O Estado precisa usar a execução fiscal, que, segundo o CNJ, corresponde a mais de 28 milhões de processos e tem uma taxa de congestionamento de cerca de 88%. O que quer dizer que o julgamento e a constrição do patrimônio da empresa demorarão anos.
Assim, pensou-se na reforma tributária, em restringir o crédito de ICMS (abatimento do imposto) à comprovação do efetivo pagamento do tributo. Qual o problema dessa solução no modelo atual do IVA (ICMS) no Brasil?
O tributo é declarado e recolhido com uma distância de mais de 30 dias da ocorrência do fato gerador, o que impede o próximo elo da cadeia de saber se seu fornecedor de fato recolheu o ICMS (IVA) e se poderá abatê-lo do seu imposto a recolher, o que poderia gerar um prejuízo ao comprador pela inadimplência do seu fornecedor.
A EC 132/2023 sabiamente resolveu esse dilema. Estabeleceu a possibilidade de condicionar o crédito ao pagamento efetivo do IVA, nos casos em que se permita ao comprador recolher o tributo no lugar do vendedor (reverse charge mechanism).
Esse instrumento é eficiente para as vendas efetuadas entre contribuintes do IVA, no meio da cadeia econômica, já que o comprador tem a segurança de que terá direito ao crédito de IVA, pois ele mesmo recolherá.
No entanto, para compras feitas por consumidor final, que não se aproveitam de crédito de imposto, não há, atualmente no ordenamento jurídico, barreira eficaz ao vendedor para não se apropriar indevidamente desse tributo cobrado do consumidor. Como mencionado anteriormente, a ineficiência das execuções fiscais torna economicamente atrativo o não recolhimento do tributo.
Para essa situação, o split payment é a solução. O recolhimento do tributo aos cofres públicos de forma concomitante à liquidação financeira da venda, torna o adimplemento uma regra do sistema. Não há como evadir. A medida assimila-se à retenção do Imposto de Renda na fonte dos servidores públicos ou ao IOF Câmbio em operações feitas com cartões de crédito.
Com a maior parte das operações sendo feitas por meios eletrônicos atualmente, em especial com a introdução do Pix, atrelado ao sistema brasileiro de notas fiscais em tempo real, o Brasil tem tudo para tornar a inadimplência de IVA e o excesso de obrigações acessórias, que representam peso morto à economia, problemas do passado.
O Programa de Assessoramento Técnico à implementação da Reforma da tributação sobre o consumo (PAT-RTC) terá 60 dias a partir de sua instituição para apresentar ao governo os anteprojetos de lei que regulamentarão a EC 132/2023. Como entusiasta do potencial do split payment de revolucionar a tributação do consumo brasileiro, ficarei na torcida para que ele seja implementado o quanto antes.
FONTE > JOTA > 08 Fev 2024
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