Reforma tributária: especialistas divergem sobre a proposta e temem judicialização
Em congresso da ABDF, tributaristas e economistas defendem mudanças, mas afirmam que proposta pode gerar contencios
Quinta - feira, 17 de agosto 2023
Especialistas são unânimes sobre a necessidade de o Brasil passar por uma reforma tributária profunda, mas divergem sobre os impactos que a proposta em discussão no Congresso Nacional pode ter sobre os contribuintes. Em congresso da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), tributaristas e economistas afirmaram que as mudanças aprovadas pela Câmara dos Deputados, em vez de simplificar o sistema, podem aumentar a judicialização no país, sobretudo em teses relacionadas ao pacto federativo.
O tema foi debatido na noite desta quarta-feira (16/8) durante o VII Congresso Internacional de Direito Tributário do Rio de Janeiro, com o tema “Segurança Jurídica, Litigiosidade e Competitividade”, promovido pela ABDF. A plateia, em sua maioria, estava composta por tributaristas contrários à proposta de reforma tributária nos moldes em que foi aprovada na Câmara em 7 de julho.
O presidente honorário da ABDF, Gustavo Brigagão, mais uma vez, criticou o que chamou de açodamento na aprovação da PEC 45 na Câmara. Entre outros motivos, o advogado questionou a aprovação de um relatório divulgado 24 horas antes da votação – e em dois turnos realizados na sequência um do outro. “Há consenso entre as pessoas que discutem a reforma tributária sobre a necessidade de fazê-la. Mas será que esta é a boa? Esta que está no Congresso Nacional depois de todo aquele açodamento [na aprovação na Câmara]?”, questionou.
Pacto federativo
Pelo texto aprovado na Câmara, a nova tributação sobre o consumo será criada nos moldes de um Imposto sobre Valor Agregado (IVA). Serão criados dois IVAs: um IVA federal, chamado Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), com a junção do IPI, PIS e Cofins; e um IVA subnacional, denominado Imposto Sobre Bens e Serviços (IBS), reunindo o ISS e o ICMS. A proposta será analisada agora pelo Senado Federal.
Um dos principais pontos de divergência entre especialistas é a criação do Conselho Federativo do IBS. Por meio desse órgão, os estados, o Distrito Federal e os municípios farão a gestão integrada da arrecadação do imposto. Parte dos entes subnacionais discorda do texto, por considerar que perderá autonomia na gestão e na arrecadação do IBS, o que violaria o pacto federativo.
A advogada Mary Elbe Queiroz, sócia do Queiroz Advogados Associados, afirmou que o pacto federativo está consagrado na Constituição. Ela disse que, com a criação do Conselho Federativo do IBS, o Brasil terá uma espécie de “quarto superpoder”. ”Municípios vão perder todos os poderes; estados, todos os poderes. E o que vocês farão? Porque o ‘Conselhão’ é quem manda. Estados e municípios ficarão com ‘pires na mão’. É preciso refletir sobre esse modelo que vamos trazer porque queremos uma reforma para simplificar [o sistema tributário]. Não teremos simplificação com 150 novos dispositivos constitucionais”, criticou Queiroz.
O tributarista Alberto Macedo, coordenador do movimento Simplifica Já, avaliou que, com a perspectiva de o IVA no Brasil ter “a maior alíquota do mundo”, a tendência é que ele seja disfuncional e gere sonegação e contencioso.
IVA dual e Conselho Federativo são a melhor escolha, diz especialista
Por outro lado, a advogada Melina Rocha, consultora internacional e especialista em IVA, considerou que tanto o IVA dual quanto a criação do Conselho Federativo do IBS parecem “a melhor escolha do ponto de vista de administração de um tributo compartilhado”. Ela afirmou que o Canadá e a Índia, com estrutura federada, possuem um IVA dual, justamente para acomodar a repartição de competências entre os entes federativos.
Para a especialista, sem o Conselho Federativo, a solução para a administração do IBS poderia passar por alternativas como a arrecadação do tributo pelo estado de origem, que ficaria obrigado a repassar os valores ao destino, mas o que seria difícil de se implementar em um país com as dimensões do Brasil. Outra possibilidade seria as empresas recolherem os valores e repassarem para o destino. “O Conselho Federativo é superior a todas essas opções”, defendeu Rocha, que foi a única voz dissonante no painel da ABDF.
Tema será judicializado por muitos anos, diz Cintra
Ex-secretário da Receita Federal do governo Bolsonaro, o economista Marcos Cintra observou que a PEC 45 previa, originariamente, um IVA único, mas que se transformou em um IVA dual nas discussões no Congresso Nacional. Por meio desse novo formato, disse, o país é obrigado a enfrentar a questão do pacto federativo. O economista observou que as opiniões sobre se esse modelo ferirá ou não o pacto federativo são divididas. Independentemente da tese com maior número de defensores, analisou, o tema será judicializado no Brasil.
“Eu não tenho dúvidas, independentemente de quem ganha, de quem tem maior número de defensores em uma posição ou em outra, isso vai ser judicializado durante muitos e muitos anos, lançando o país em um mar de incertezas por muito tempo”, afirmou Cintra.
Cintra observou que o ISS representa uma arrecadação de R$ 100 bilhões por ano, dentro de uma arrecadação total sobre o consumo no Brasil de R$ 1,3 trilhão. “Será que 10% desse valor [total da arrecadação sobre o consumo] justifica termos de enfrentar esse imbróglio do pacto federativo para incluir o ISS no ICMS por meio do IVA dual?”, questionou.
Jorge Rachid, que assumiu o posto de secretário da Receita Federal em diferentes períodos ao longo dos governos Lula, Dilma e Temer, afirmou que o que se está propondo no Brasil é um “sistema absolutamente complexo”. A seu ver, é necessário entender a parte operacional da administração dos tributos. O ex-secretário afirmou que o Brasil precisará de “inteligência tecnológica” para fazer a nova gestão dos tributos e que será tarefa difícil conciliar a posição dos representantes dos estados e municípios no Conselho Federativo. Pela proposta, os estados e o Distrito Federal terão 27 membros no Conselho, um para cada ente federado. Os municípios e o Distrito Federal serão representados por outros 27 membros.
Já Everardo Maciel, que foi secretário da Receita Federal no governo de Fernando Henrique Cardoso, afirmou que o Conselho Federativo do IBS é “a perfeição da imperfeição”. Maciel também considerou que o modelo proposto, com 54 representantes, será de difícil operacionalização. “É impossível sair uma solução [do conselho]”, criticou.
Para Maciel, com a reforma tributária em discussão no Congresso, o Brasil está “claramente criando uma solução que ofende a coesão federativa”. “O federalismo fiscal tem por fundamento a competência tributária. Esta ganha concretude com a capacidade de o ente instituir impostos. Esta competência é subtraída e, portanto, esta é uma violência ostensiva contra o pacto federativo, que é cláusula constitucional”, criticou.
Lilian Azevedo, procuradora municipal de Salvador (BA) e presidente da Associação Nacional dos Procuradores Municipais (ANPM), ressaltou que os municípios são responsáveis pela prestação da maioria dos serviços na ponta e que, em um país com extrema desigualdade social, é preciso refletir sobre o modelo de reforma tributária. Azevedo defendeu que o país dê passos “conscientes e não açodados” na discussão da reforma tributária.
Creditamento
Brigagão criticou ainda a previsão que consta na proposta aprovada na Câmara de que a lei complementar “poderá estabelecer hipóteses em que o aproveitamento do crédito ficará condicionado à verificação do efetivo recolhimento do imposto incidente sobre a compensação”.
Para o presidente honorário da ABDF, embora a proposta da reforma seja de creditamento amplo, o texto limita o direito dos contribuintes, uma vez que impõe a eles o ônus de fiscalizar o cumprimento das obrigações tributárias nas etapas anteriores da cadeia econômica.
“Isso não existe em lugar algum do mundo. Nenhum IVA condiciona o creditamento ao pagamento no elo anterior da cadeia”, disse Brigagão.
Fonte > JOTA > CRISTIANE BONFANTI
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